Menina de 13 anos grávida após dois anos sendo estuprada pelo padrasto, em Fortaleza. Menina de 14 anos grávida após ser estuprada pelo namorado da mãe, em Mulungu. Menino de 7 anos estuprado por um conhecido da família, em Icó. Onze – e contando – crianças e adolescentes estuprados pelo mesmo homem, que tem parentesco com pelo menos nove delas, em Banabuiú. Todos no Ceará, todos em 2020.
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De janeiro a agosto deste ano, foram registrados, só em Fortaleza, 450 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, de acordo com a Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), órgão municipal. São cerca de 56 por mês. Em 2019 inteiro, foram 718. Essas ocorrências que chegam às Delegacias da Criança e do Adolescente (DCA), de Combate à Exploração (Dceca) e ao Juizado da Infância, porém, representam apenas 10% da realidade: a estimativa é de que mais de 18 meninas e meninos sejam violentados por dia, na Capital. Podem ser 562 por mês.
A maior parte dos casos, segundo a Funci, ocorre na Regional V, que compreende bairros como Bom Jardim e Conjunto Ceará. Em seguida, vem a Regional VI, de bairros como Messejana, Jangurussu e Alto da Balança – onde o padrasto de uma das vítimas já descritas aqui sofreu uma tentativa de linchamento, após a descoberta da gravidez da adolescente.
Em todo o Ceará, até abril deste ano, 418 crianças e adolescentes haviam chegado aos registros da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) como vítimas de crimes sexuais. Os dados foram mostrados em maio por reportagem do Diário do Nordeste. As estatísticas atualizadas não foram repassadas pela SSPDS à reportagem até o fechamento desta edição. Pedimos também entrevista com representante da Dceca, mas a solicitação não foi atendida.
Proximidade
A barbárie que invade os corpos e mentes em formação, por outro lado, não se omite. É cometida nas mais diversas formas e cenários, mas segue padrões: em geral, o agressor tem parentesco com a vítima, confiança dos familiares e consegue manter os abusos por longos períodos. Até ser flagrado, como aconteceu em Icó. Ou até a adolescente violentada engravidar, como em dois casos recentes no Ceará.
Até julho de 2020, aliás, 46 meninas de 10 a 14 anos de idade passaram por aborto, seja espontâneo, seja por razões médicas, segundo o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS).
“Agressor e vítima têm, em geral, uma relação de poder, sendo ele pai, padrasto ou alguém conhecido. Existe uma relação intrafamiliar ou de confiança, e em algumas famílias a criança não encontra uma rede de proteção. A maioria das vítimas são meninas, e quando falamos de trabalhar sexualidade e autodefesa é para que elas tenham força para romper o ciclo da violência”, analisa Marina Araújo, coordenadora do Núcleo de Atendimento do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).
A culpabilização da vítima, segundo Marina, é um dos fatores que contribuem para a subnotificação dos casos – que deve aumentar diante do isolamento social imposto pela pandemia. “No acolhimento, temos que acreditar na versão da criança ou do adolescente. Pais ou pessoas de confiança devem ouvir e acolher a vítima sem culpabilizá-la. É muito importante que a denúncia seja feita para que, a partir daí, a violência seja cessada. Com a pandemia, o acesso aos órgãos ficou mais restrito, agravando o problema”.
Outra barreira é a dificuldade das famílias e das escolas na lida com o tema sexualidade, como aponta Kelly Meneses, coordenadora do Programa Rede Aquarela, da Funci. “A informação não chega até as crianças e adolescentes. Quando percebem, eles já estão sendo vítimas de violência há anos. E a sociedade ainda duvida muito da palavra da criança: mas 92% delas estão falando a verdade, quando denunciam. E o restante mentiu por obrigação de um adulto”, estima.
A Rede Aquarela, que articula e executa a Política Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil, possui equipes de atendimento na Dceca, em serviços de acompanhamento psicossocial e nos órgãos do Judiciário, a fim de abarcar a assistência à vítima em todas as fases após a denúncia, como explica Kelly. Além disso, o programa atua na prevenção aos crimes sexuais infantojuvenis, capacitando profissionais da educação, da saúde e os próprios familiares para perceberem os sinais de abuso nas vítimas.
Sinais
Escoriações, infecções urinárias, sono perturbado e mudanças de comportamento são alguns deles, como alerta Luciana Quixadá, doutora em Educação e professora do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece). “Existem indicadores que, se associados, e não isolados, devem ser alertas. Há os físicos, como controle dos esfíncteres, roupas rasgadas ou com manchas de sangue e hemorragias; e os comportamentais, como baixa autoestima, medo de ficar sozinha com alguém e timidez excessiva”, lista. No caso de adolescentes, observa a psicóloga, o desenvolvimento de depressão, envolvimento com drogas e até ideação ou tentativas de suicídio também são frequentes.
Para Luciana, a escola tem papel fundamental na prevenção e na identificação desses casos, mas é necessária uma mudança na estrutura social para se alcançar a raiz do problema. “Precisamos reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direito. O adulto se coloca como tendo poder sobre eles, subjugando os desejos aos seus próprios, e isso causa também as violências, não só sexuais. Isso ocorre principalmente entre meninas negras e pobres. Existe um ponto de intersecção entre raça, classe e gênero”, destaca, apontando a urgência de uma rede de proteção efetiva.
Marina Araújo, do Cedeca, reforça que “o poder público precisa se comprometer com um plano de enfrentamento de verdade”, e que somente a Rede Aquarela, por exemplo, não é suficiente para o universo de Fortaleza.
Socorro França, titular da Secretaria da Proteção Social do Ceará (SPS), reforça que o Estado atua no acolhimento psicossocial de crianças e adolescentes por meio dos 113 Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) municipais e dois Regionais. “A gente sente que há uma subnotificação muito forte. Muitas vezes, a mãe sabe que o filho ou a filha é abusada, mas como a única renda é de alguém que vive com eles, não notifica”, observa.
Segundo a secretária, assim como a Funci, a SPS também busca a capacitação de servidores técnicos da assistência social, da educação e da saúde para identificar sinais de abuso no comportamento infantil. Ela afirma que, em breve, será firmada uma cooperação técnica com o Governo Federal para que denúncias do tipo informadas aos Disque 100 e Disque 180 sejam recebidas também pela Secretaria, para posterior encaminhamento e monitoramento.
Diário do Nordeste