Medidas em meio aberto revelam ineficácia e são alvo de descrédito

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Cerca de 80% das penalidades fora da internação não são cumpridas pelos adolescentes
As diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) apontam, em seu artigo 104, que os indivíduos menores de 18 anos são inimputáveis, não podendo responder por si próprios judicialmente. Para cada delito, há sanções de caráter socioeducativo que vão desde medidas em meio aberto, voltadas aos casos de infrações “leves”, à internação em regime fechado, cuja aplicação deve ocorrer apenas em situações mais graves.
Muitas vezes, a falta de comprometimento ocasiona o desacato Foto: JL ROsa
Hoje, de acordo com a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), 2.032 adolescentes cearenses se encaixam no primeiro cenário. Responsáveis por atos infracionais como roubo, furto, tráfico de drogas e outros, 252 destes rapazes e moças prestam serviços à comunidade, realizando tarefas gratuitas em hospitais, escolas e entidades assistenciais. Os outros 1.780 estão submetidos à chamada Liberdade Assistida, na qual possuem a conduta supervisionada durante alguns meses.
A maior parte dessas penalidades, no entanto, se dá apenas na teoria. Segundo o juiz Manuel Clístenes, titular da 5ª Vara da Infância e da Juventude, aproximadamente 80% das medidas socioeducativas em meio aberto são descumpridas. Além de escancarar um sistema que não funciona, a estatística representa as muitas chances perdidas de reverter os índices de delinquência juvenil, uma vez que boa parcela desses adolescentes ainda não se envolveu por completo na criminalidade.

Efeito nulo

“O efeito das ações é quase nulo”, afirma Clístenes. A ineficácia acontece, segundo ele, em parte, devido à ausência do poder público em fazer o acompanhamento das medidas, em outra, por conta do descrédito atribuído pelos adolescentes ao trabalho. Rapazes e moças não honram o compromisso de comparecer aos atendimentos e, quando o fazem, muitas vezes é pelo receio de ir para os centros educacionais.

Acompanhado dos pais, Felipe (nome fictício) aguardava, no Juizado da Infância e Juventude do Estado, uma sentença. Aos 17 anos, começou a praticar delitos por influência de “más amizades”, como relata o pai. Agora, apreendido por roubo, terá de passar seis meses prestando serviços à comunidade. Antes de sair rindo pela porta da sala de audiência, ele afirma: “Sei que se não cumprir, vou para o Patativa”, diz, referindo-se à instituição de internação.
O semblante despreocupado de Felipe pode resumir, na avaliação de Clístenes, a visão que os adolescentes em conflito com a lei, em sua maioria, possuem sobre as medidas em meio aberto. A falta de comprometimento e a descrença na sanção ocasionam o desacato. “Para que a medida seja cumprida da forma correta, ele precisa ter o mínimo de responsabilidade, e grande parte deles não tem esse perfil de compromisso”, destaca o juiz.
Na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) da Capital, a quantidade de meninos e meninas reincidentes é grande e crescente, revela Yolanda Fonseca, titular da unidade. Para ela, ainda não há conscientização por parte dos jovens sobre a necessidade de seguir as determinações judiciais à risca, e que, para muitos, a medida socioeducativa se restringe à assinatura dos termos que comprovam o comparecimento aos atendimentos e nada mais.

Responsabilidades

“Eles não veem a medida como uma pena, uma punição. No entendimento deles, cumprir a sentença é comparecer na data marcada e assinar os papéis. Não sabem que existem regras, como frequentar a escola e ter horários para chegar em casa, por exemplo”, explica Yolanda
Executar as ações de forma eficaz, contudo, não é responsabilidade exclusiva dos adolescentes. Na prática, a função de incentivá-los a firmar e manter o compromisso compete ao poder público municipal, por meio das atividades realizadas nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas). Mas o alto índice de desrespeito às medidas é prova irrefutável de que o trabalho tem deficiências, a começar pelo número de unidades e profissionais atuando. Apenas quatro funcionam, hoje, na Capital, quando, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a Cidade precisa de, no mínimo, mais oito centros.
“Os Creas não estão devidamente equipados para dar encaminhamento a essas ações. A unidade executora precisa ter políticas direcionadas a cada necessidade do adolescente, mas isso não acontece. Por isso, eles não dão importância à medida, porque ela não existe como deveria existir”, afirma a promotora Fátima Valente, titular da 5ª Promotoria da Infância e da Juventude. Para ela, a carência de políticas que ofereçam melhores condições de vida fazem com que o sistema, em geral, não funcione.

Reverter o dano

Élcio Batista, titular da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude, reconhece que o trabalho feito nos Creas está fracassando em suas atribuições, que deveriam promover o reforço da cidadania e o engajamento em ações ressocializantes e reeducadoras. Segundo ele, a necessidade mais urgente consiste na criação de programas específicos para amparar os adolescentes em conflito com a lei e suprir suas privações.
“Grande parte desses jovens tem déficit de capitais intelectual, cultural, social e econômico. As medidas precisam enfrentar isso”, diz Élcio. A iniciativa do Município, conforme ele, é ampliar o acesso a projetos já desenvolvidos e que se mostraram eficientes, como os Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esportes (Cucas) e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária (ProJovem).
O secretário de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Cláudio Ricardo, também assume as falhas e admite, ainda, que o Município é ausente no acompanhamento das medidas socioeducativas. “Deveria haver um apoio mais efetivo. Quando o jovem não cumpre a sentença, temos que estar junto às famílias, saber o que está acontecendo”, declara.
O que resta, agora, é tentar reverter o dano. Segundo Ricardo, a secretaria pretende ampliar o quadro de profissionais e, mais além, desenvolver um leque de alternativas para que os adolescentes possam se reinserir de forma produtiva e saudável na sociedade. “Nosso papel não é só assistir os jovens, mas também fortalecer vínculos e orientar para práticas e atitudes que contribuam nesse sentido”, diz.

Processos não são julgados dentro do prazo previsto

No último dia 26 de maio, um suspeito de cometer 20 homicídios no município de Eusébio, Região Metropolitana de Fortaleza, voltou às ruas da Cidade sem receber julgamento. A notícia fica ainda mais alarmante quando descobre-se que o possível autor dos crimes tem 17 anos, e que a liberação aconteceu pois os processos judiciais referentes às infrações não foram concluídos no prazo, estipulado em 45 dias pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Segundo o juiz Manuel Clístenes, a demora no julgamento se dá por conta do grande número de processos acumulados e da carência de pessoal nas Varas da Infância e da Juventude para dar andamento às sessões. Com isso, somente entre os meses de janeiro e abril deste ano, cerca de mil ações judiciais tiveram os prazos de julgamento extrapolados no Ceará, conforme dados da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS).
“A meu ver, esse prazo não é suficiente. O estatuto deveria ser modificado nesse ponto, pelo menos nos casos graves, para que o período pudesse ser prorrogado. Noventa dias seria um tempo razoável, que possibilitaria resolver de 80% a 90% dos processos tranquilamente”, aponta o titular da 5ª Vara da Infância e da Juventude.
Sem o julgamento realizado dentro do tempo limite, o ECA estabelece que os adolescentes em internação provisória sejam liberados imediatamente para aguardar a audiência em liberdade. A situação, segundo Clístenes, é negativa não só para a sociedade, mas também para o próprio acusado. “Quando o adolescente recebe a sentença seis meses depois, por exemplo, ele não entende porque vai ser internado. A gente tem que explicar que ele não pagou a pena”, diz.
A promotora Fátima Valente ressalta, no entanto, que a liberação não significa que os julgamentos não aconteçam. “As audiências vão ocorrer, mas o adolescente não vai poder ficar esperando apreendido”, explica.
Na tentativa de dar celeridade às sentenças, as Varas da Infância e da Juventude têm executado mutirões que se propõem a diminuir o congestionamento de processos e dar uma resposta em relação aos atos infracionais que ainda não tiveram punições. Até o próximo dia 28 de junho, 800 audiências marcadas devem ser realizadas por meio da iniciativa. “Vamos acabar com essa história de decorrer o prazo e o adolescente não ser julgado”, garante ela.

VANESSA MADEIRA
ESPECIAL PARA CIDADE

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