Dois portadores de HIV que receberam transplantes de medula óssea para tratamento de câncer no sangue estão livres do vírus há várias semanas, desde que o tratamento com antirretrovirais foi interrompido. Segundo os médicos, ainda é cedo para dizer que eles estão “curados”, mas os resultados, apresentados ontem numa conferência científica na Malásia, são vistos com muito interesse por pesquisadores que buscam uma cura para a aids. Timothy Henrich, cientista responsável pela pesquisa. (Copyright AP Photo/Lai Seng Sin)
Os dois pacientes – cujas identidades são mantidas em sigilo, por questões éticas – foram tratados num hospital de Boston, nos EUA. Eles tinham linfoma e receberam transplantes de medula óssea para curar o câncer, não a aids, mas o HIV desapareceu do seu sangue após a cirurgia.
Os transplantes foram realizados entre dois e cinco anos atrás, e os primeiros resultados do efeito sobre o HIV foram apresentados em julho do ano passado, mas naquele momento eles ainda estavam tomando antirretrovirais. A novidade agora é que os pacientes pararam de tomar as drogas – um deles há 15 semanas e o outro, há 7 – e, mesmo assim, não há níveis detectáveis do vírus no sangue deles.
Os novos dados foram publicados na revista Journal of Infectious Diseases e apresentados na reunião da Sociedade Internacional de Aids, em Kuala Lumpur, capital da Malásia.
“Não podemos ainda falar em cura. O tempo de acompanhamento é muito curto”, ressaltou a presidente da conferência, Françoise Barré-Sinoussi, que foi uma das cientistas responsáveis pela descoberta do HIV, nos anos 1980. Quando um paciente para de tomar os medicamentos, o vírus costuma reaparecer no sangue cerca de um mês depois, mas isso varia de pessoa para pessoa.
“A doença poderá voltar daqui uma semana, ou daqui seis meses. Só o tempo vai dizer”, ressaltou, também, um dos autores da pesquisa, o médico Timothy Henrich, da Faculdade de Medicina de Harvard e do Brigham and Women’s Hospital, em Boston.
“Não há prazo para declarar uma cura. Esses pacientes terão de ser acompanhados por toda a vida”, disse ao Estado o infectologista Alexandre Barbosa, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. “Por isso os resultados são bastante animadores, mas precisam ser vistos com cautela.”
A medula óssea é o tecido responsável pela produção das células do sangue e do sistema imunológico – que são as células que servem de reservatório e são atacadas pelo HIV. Para receber o transplante, os pacientes precisam ser imunossuprimidos, o que significa que seu sistema imunológico é quase que totalmente destruído, para depois ser reconstruído com as células do doador.
No caso do câncer no sangue, o procedimento serve para erradicar as células tumorais e substituí-las por células saudáveis. No caso da aids, ocorreria o mesmo com as células imunológicas infectadas pelo HIV.
Histórico. Os casos dos dois pacientes de Boston lembram o do famoso “paciente de Berlim”, Timothy Brown, que alguns anos atrás foi declarado “curado” da aids após um transplante de medula para tratamento de leucemia. A diferença crucial é que Brown recebeu a medula de um doador que era geneticamente imune ao HIV. Assim, seu sistema imunológico doente foi substituído por outro resistente ao vírus, e a doença desapareceu por completo (até agora, pelo menos).
Segundo Barbosa, cerca de 1% da população é portadora de uma mutação genética, chamada delta-32, que confere imunidade ao HIV. Elas não produzem uma proteína chamada CCR5, que é uma das “fechaduras” usadas pelo vírus para penetrar nas células humanas (a outra é chamada CD4). “Sem acesso a essas duas fechaduras ele não entra; ponto”, afirma Barbosa.
No caso dos pacientes de Boston, eles receberam medulas de pessoas “normais”, sem a mutação. Mesmo assim, o HIV desapareceu do sangue. Mas é possível que o vírus esteja “escondido” em certos tecidos do organismo e volte a se multiplicar com o tempo. Neurônios, por exemplo, também possuem os receptores CD4 e CCR5, e podem servir como reservatórios do vírus.
Implicações. Mesmo que os pacientes sejam eventualmente declarados “curados”, o procedimento não poderá ser usado em grande escala como uma terapia antiaids, alertam os especialistas. Isso porque o transplante de medula óssea é um procedimento de alto risco, com 10% de risco de morte do paciente. Em portadores do HIV, que já têm o sistema imunológico debilitado pela doença, esse risco é ainda maior. “É muito raro um paciente com HIV ser submetido a um transplante de medula. Só mesmo em casos extremos de vida ou morte, como estes de câncer no sangue”, explica Barbosa.
Ainda assim, para os pesquisadores, é um resultado importante que pode apontar o caminho para estratégias mais eficientes de controle da doença – ou até mesmo o desenvolvimento de vacinas.
(*Com informações do The New York Times e agências internacionais)